Lado bom, lado mau: uma tensão interna entre liberdade, culpa e escolha.


E se pudéssemos separar o nosso lado “bom” do nosso lado “mau”? E se levássemos essa hipótese ao extremo, na figura de um adicto dividido entre o dever moral de se impedir de autodestruir e o prazer libertador de o fazer?

Essa é, em essência, a tese da dualidade do espírito proposta por O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde. Neste breve conto, Robert Louis Stevenson encena o conflito entre moralidade e instinto como origem de uma profunda angústia existencial. Quantas vezes ouvimos – ou dissemos – frases como: “Se eu eliminasse esta parte de mim, seria uma pessoa melhor”?

O conto, no entanto, não apresenta respostas nem soluções fáceis para este dilema. Em vez disso, oferece uma visão provocadora e inquietante:

  • A benevolência do lado “bom”, ao permitir a existência do “mau”, é completamente rejeitada por este último assim que assume o controlo.
  • Quanto mais se tenta reprimir ou esquecer o lado obscuro, mais violentamente ele irrompe, como se exigisse reconhecimento.
  • O “bom”, quando vivido como fachada de virtude ou repressão moral, torna-se frágil e incapaz de conter o seu oposto.
  • O “mau” não apenas despreza o “bom” – odeia-o. Mas, paradoxalmente, ama-o, pois dele depende a sua própria existência.

Mais do que emitir juízos morais sobre cada uma das nossas facetas, o que verdadeiramente importa é questionar: o que fazer com estas dicotomias internas? Devemos integrá-las? Escolher entre elas? Entender por que sentimos necessidade de moralizar os nossos impulsos mais profundos?

Stevenson, talvez sem intenção sistemática, antecipa inquietações existencialistas que viriam a ser mais tarde desenvolvidas por autores como Dostoiévski, Sartre ou Camus. A liberdade individual, o peso das escolhas, o absurdo de tentar definir o “eu” de forma definitiva – tudo isso está já contido na trágica trajetória de Jekyll. O que significa ser livre, afinal, se ao escolhermos um caminho estamos a reprimir o outro que também nos pertence?

Outro elemento simbólico central do conto é o elixir criado por Jekyll. A poção que permite a transformação em Hyde não é apenas uma solução científica para um problema ético: é a fantasia de muitos de nós – encontrar uma via rápida, externa, química ou tecnológica, que nos liberte do conflito interno, sem termos de nos confrontar com ele. O elixir não resolve nada: apenas amplifica a cisão.

Por fim, é importante ir mais longe e perguntar: será o lado “mau” apenas destrutivo? Ou poderá ser também uma via de autenticidade, de confronto com o que é reprimido, mas real? E o lado “bom” – será mesmo sempre virtuoso, ou às vezes apenas conformista, socialmente aceito, domesticado?

Talvez a verdadeira questão não seja escolher entre um lado ou outro, mas aprender a lidar com a tensão entre ambos. Reconhecer, integrar, e sobretudo, escutar. Explorar esses mundos internos é um trabalho exigente, mas profundamente transformador – e, espera-se, recompensador.

Leave a Comment