Endereçar a Raiva – o que é que ela nos indica


Sentir raiva não é algo de que nos orgulhemos. É uma emoção mais forte do que a nossa vontade; nasce no fundo do âmago, do nosso mais íntimo ser, e manifesta-se de dentro para fora como uma enxurrada a transbordar pelo corpo.

Às vezes conseguimos contê-la, erguendo imaginárias barragens que impedem que toda a sua energia se expanda; noutras, não há contenção possível e lá vão objetos a voar das nossas mãos contra paredes ou pessoas, ou palavras duras a escalar em volume e intensidade assim que ganham vida própria ao sair da boca. Outras vezes, a raiva dirige-se a nós mesmos, sob a forma de autocrítica, vergonha ou autodesprezo.

Se repararmos bem, percebemos que a raiva tem sempre uma função: identificar um culpado no mundo, o suposto causador do mal-estar que se manifesta na mente e no corpo. Este, invariavelmente, fica tenso, quente, acelerado, agitado… é parte essencial da forma como a raiva é vivida.

Em todas estas situações, a raiva aponta para um padrão comum: revela a vulnerabilidade do nosso ser diante do outro. É difícil aceitar esta verdade, porque a nossa cultura nos ensinou a associar vulnerabilidade a “fraqueza” e a “incapacidade” de estar à altura das expectativas. E estas nascem da relação que estabelecemos com os outros, pois é nessas mesmas relações que “medimos” o nosso “sucesso”, ou seja, a nossa virtude de sermos capazes de construir uma reputação que nos dá reconhecimento, valor e propósito na vida.

E quem não deseja sentir tudo isso? Talvez apenas os Zaratustras* ou os Meursaults** da literatura. Todos os restantes mortais aspiram a sentir-se vistos, valorizados e reconhecidos. E para que serve isso? Para fugirmos da solidão! Porque estar só, no mundo atual, também pode significar que, talvez, a nossa vida não tenha valor. Eis, então, a condição humana nua e crua: temos medo de que a nossa existência seja vazia, e isso lança-nos numa tal angústia que dela queremos fugir!

Mas o que tem a solidão a ver com a raiva? Tem a ver com o sentimento de injustiça de não nos sentirmos acolhidos nos momentos em que mais precisamos, nos momentos em que nos sentimos mais vulneráveis. A raiva diz-nos que a fragilidade do nosso ser, naquele momento ou naquela situação, não é compreendida nem acolhida. E diz-nos que a nossa existência não tem sentido entre os outros e no mundo.

Sentir que a nossa vulnerabilidade não tem lugar no mundo magoa. Porque põe em causa o valor que damos à nossa própria vida. E isso pode levar à revolta que se manifesta em comportamentos de raiva.

Diante desta situação, cabe-nos fazer escolhas. Podemos continuar a procurar culpados lá fora para justificar o nosso mal-estar interior e para nos desresponsabilizar pelas nossas próprias escolhas, ou então podemos mergulhar num ato de fé dentro de nós, à procura de fazer o melhor por nós a partir daquilo que o mundo fez de nós.

Portanto, esteja atento: se se sentir vulnerável, procure ouvir-se. Certamente há aí dentro um cuidado para consigo mesmo que merece atenção. E um terapeuta pode acompanhá-lo(a) a fazer esse caminho.

*Personagem principal do livro “Assim Falava Zaratrusta”, de Friedrich Nietzsche

**Personagem principal do livro “O Estrangeiro”, de Camus

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