Nietzsche, Camus e a difícil arte de aceitar o passado
Já te imaginaste a viver, uma e outra vez, exatamente a mesma vida? Com todos os mesmos erros, falhas e acasos? Parece uma maldição, não é? Mas para Nietzsche, essa ideia, a do Eterno Retorno, é mais do que um castigo: é um teste ao valor que damos à vida.
Olhar para o passado: porquê e para quê?
Olhar para a nossa vida em retrospectiva é algo inato, um gesto espontâneo que fazemos, independentemente da intenção. Por vezes, revisitamos o que tem sido o nosso percurso para encontrar justificações; outras vezes, para contemplar conquistas; outras ainda, para validar de como as dificuldades nos tornaram mais fortes; ou, até, para arranjarmos um pretexto que nos isente de nos responsabilizarmo-nos sobre o nosso próprio destino.
Nessas deambulações mentais, emergem emoções que se fazem sentir no corpo. Este reage às memórias das experiências vívidas, enquanto a mente tenta apreender e definir o significado dessas experiências. Mas o que fazer com esse legado, com as escolhas que marcaram o nosso passado?
O tribunal interior e a autoavaliação
Enquanto seres humanos, somos seres em relação. E, nas relações com os outros, surgem comparações inevitáveis. A minha vida, comparada com a dos outros… Tornamo-nos juízes da nossa própria história — juízes parciais, por vezes severos, outras vezes indulgentes. Consoante a relação que temos connosco mesmos, podemos ser justos e acolhedores, ou duros e castigadores.
Nesse tribunal interior, onde o júri é composto pelas múltiplas partes de nós, nem sempre nos damos conta de que estamos, de facto, a moldar o nosso destino pela forma como escolhemos olhar para nós mesmos.
Nietzsche e o Eterno Retorno: viver tudo outra vez
É então que Nietzsche surge com a ideia do Eterno Retorno: serias capazes de viver novamente toda a tua vida, tal como foi vivida? À primeira vista, parece uma provocação, e acredito que a maioria das pessoas diria que não, que não gostariam de reviver tudo tal como aconteceu. Porque há sempre arrependimentos… Quantas vezes ouvimos dizer: “Se soubesse o que sei hoje, teria feito diferente.”?
Sim, estou certo de que quase todos nós, se pudéssemos voltar atrás, faríamos outras escolhas. Mas Nietzsche não propõe esta ideia como condenação, mas como exercício de reflexão sobre o valor da vida. Se tivéssemos, de facto, de reviver eternamente a nossa vida, exatamente como ela foi, o que mudaríamos? Num cenário assim, não haveria espaço para redenções finais. Colocar-se-ia então a verdadeira questão: qual o sentido dessa vida? Seríamos capazes de dar significado a uma existência absurda, repetida sem fim?
Camus e a felicidade de Sísifo
Camus oferece uma resposta possível a esta provocação nietzschiana. No seu O Mito de Sísifo, o pensador francês parte do absurdo da existência para refletir sobre o desejo humano de encontrar sentido e propósito na vida. Para Camus, temos duas opções: negar a vida (sendo o suicídio a sua expressão mais extrema), ou aceitar o absurdo e revoltar-nos, afirmando a vida tal como ela é.
É isso que representa o castigo imposto pelos deuses a Sísifo, condenado a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar de novo até à base. Como suportar tanta injustiça? Como encontrar sentido nesse ciclo absurdo?
Camus responde que é precisamente na aceitação da sua condição absurda que Sísifo afirma a sua existência, sem necessidade de um sentido transcendente.
“É preciso imaginar Sísifo feliz”, conclui.
O que fazer com o passado que já não podemos mudar?
Voltamos assim à pergunta inicial: como olhar para o passado, para as nossas histórias vividas, para as escolhas feitas, de modo a que esse passado possa catapultar uma vida mais próspera e plenamente aceite? Como viver quando não encontramos um sentido objectivo para o que já foi feito? Como recuperar a esperança entre os destroços emocionais que o passado nos deixou?
Tanto Nietzsche como Camus oferecem-nos metáforas poderosas que procuram descrever a vida tal como ela é — sem recorrer a ilusões religiosas ou metafísicas. Ambos propõem um sentido interno e afirmativo, mesmo na ausência de um propósito externo. Em ambos encontramos uma ética de coragem existencial, pois não nos encorajam a procurar o sentido da vida fora dela, mas antes dentro da forma como escolhemos viver .
Talvez não possamos mudar o que aconteceu. Mas podemos decidir como o olhamos para o passado e escolher o que fazer de nós tendo em conta a nossa história e a nossa experiência. E isso, como diria Sartre, muda tudo.