Quando iniciei o meu percurso em psicoterapia fenomenológico-existencial, não trazia experiência clínica. Trazia curiosidade, vontade de compreender o ser humano e uma confiança tímida de que talvez, um dia, pudesse ajudar alguém a encontrar sentido. O caso de M., uma jovem mulher que acompanhou praticamente todo o meu percurso formativo, acabou por se tornar o espelho do que significa, na prática, ser terapeuta.
M. chegou à terapia no final da universidade, num momento em que a vida adulta se aproximava e o futuro lhe parecia uma ameaça. Vivia entre a culpa e o medo: culpa por não ser o que acreditava que devia ser e medo de não estar à altura das expectativas dos outros. No fundo, sentia-se insuficiente e invisível. As sessões online mostravam-me um quarto escuro e desarrumado, a imagem perfeita da forma como ela habitava o seu próprio mundo.
O processo foi longo, mais de cem sessões. Ao início, eu limitava-me a seguir o método, a observar, a interpretar hermeneuticamente os conteúdos trazidos para as sessões. Mas cedo percebi que o essencial estava na relação que se foi construindo entre nós: uma relação feita de escuta, presença e paciência. A confiança de M. cresceu quando percebeu que eu não tinha respostas prontas, apenas um compromisso autêntico em estar com ela. E foi nesse espaço de presença que as primeiras luzes começaram a entrar no seu quarto e, talvez, na sua vida. Recordo-me do dia em que M. contou que abrira as cortinas do seu quarto para deixar entrar a luz natural. Para mim aquele gesto físico simbolizava algo de profundo: a abertura ao mundo, o começo de uma vida mais autêntica. A terapia começava a ganhar forma, e eu, por dentro, também me transformava.
Mas nem tudo foi linear. Houve momentos de cansaço, de frustração, de não saber o que fazer. Houve dias em que senti o peso das minhas próprias limitações e em que a vaidade subtil de “ser terapeuta” ameaçou sobrepor-se à humildade do encontro humano. M. via em mim uma figura adulta, segura, quase idealizada. E eu, movido pela vaidade de ser importante, comecei a corresponder a esse papel. Quis ser o que ela precisava. Mas nesse gesto perdi, por instantes, a autenticidade da relação. Foi na supervisão que comecei a compreender os riscos dessa sedução silenciosa:, pois o terapeuta que tenta salvar o outro acaba por se afastar da essência da terapia: o reconhecimento da liberdade e da responsabilidade do próprio cliente. Com o tempo, aprendi a confiar mais no meu “sentir”, a reconhecer o que emergia em mim durante as sessões como parte da própria relação. Nesta altura, sentia que estava a aprender muito sobre presença, empatia e vulnerabilidade.
M. também também encontrou o seu caminho. Quando terminou o curso, o mundo dos adultos, que antes a aterrorizava, começou a revelar-se um campo de possibilidades. Encontrou trabalho, começou a fazer escolhas e, aos poucos, foi ocupando o seu lugar no mundo. Percebeu que podia ser protagonista da própria história, e não apenas uma personagem secundária na vida dos outros.
Durante o processo, trabalhámos temas profundos: o peso das expectativas familiares, a necessidade de agradar, a vergonha de não corresponder. Revisitar essas memórias, especialmente a relação com o pai, foi doloroso, mas necessário. M. percebeu que muitas das suas escolhas vinham do desejo de ser validada, e que o medo de desapontar os pais a impedia de crescer. Quando finalmente decidiu confrontá-los, senti que estava perante um momento decisivo: o início de uma vida mais autêntica, em que podia ser filha sem deixar de ser mulher.
Para mim, acompanhar este percurso foi mais do que um exercício clínico, foi um encontro transformador. Através de M., aprendi que a psicoterapia não é sobre “curar”, mas sobre abrir clareiras: espaços de consciência onde o ser pode aparecer tal como é, com as suas luzes e sombras. Ser terapeuta não é dominar técnicas nem acumular teorias. É um modo de estar. É permitir-se ser afetado pelo encontro com o outro, confiar na incerteza, aceitar os próprios erros e continuar a aprender. A terapia acontece nesse espaço, entre o eu e o tu, entre o terapeuta e o cliente, entre a luz e a sombra. É ali que algo novo pode emergir.
Hoje, olho para trás com gratidão. M. ainda hoje é minha cliente, e a relação terapêutica que estabelecemos ajuda-me a perceber que a presença é o maior “super-poder” terapêutico, uma forma poderosa de poder ser-com-o-outro. Tem sido nessa presença partilhada que ambos crescemos: ela, ao descobrir a própria liberdade; eu, ao descobrir o meu modo de ser melhor terapeuta.
Porque, no fundo, a psicoterapia é isto: um encontro entre dois seres humanos que, por instantes, se permitem olhar juntos para a clareira onde o sentido pode, finalmente, surgir.

