Corpo e mente: uma longa história de separações e reencontros
Longe vão os tempos cartesianos em que mente e corpo eram vistos, à luz do platonismo, como entidades separadas mas reunidas numa só unidade: o corpo ligado ao terreno e mortal, a mente associada à alma e à sua imortalidade. Quase cinco séculos depois de Descartes ter “inocentemente” lançado as bases de uma revolução espiritual, ao elevar o ser humano à condição de confrontar Deus e a hierarquia dos poderes, corpo e alma recuperam, à boa maneira aristotélica, a visão de que são partes inseparáveis de uma mesma entidade.
Hoje, mente e corpo dividem as atenções de quem procura cuidar de si. O caminho até aqui foi enriquecido pelo contributo das filosofias hindu e budista, onde a ligação entre mente, corpo e natureza sempre esteve no centro do bem-estar.
Com o nascimento da psicologia, surge a consciência de que o corpo tem razões que a própria razão desconhece. A fenomenologia traz a noção do “corpo vivido” e a filosofia existencial, reforçada pelas neurociências, lembra-nos: sem corpo não há consciência. Entramos assim na era da informação com a rápida disseminação da psicossomática, da medicina integrativa e das práticas de mindfulness, todas elas procurando reconciliar corpo e mente como dimensões de uma mesma experiência humana.
O corpo na cultura contemporânea
Hoje em dia, basta percorrer as redes sociais para perceber a expansão desta consciência. Multiplicam-se anúncios com expressões como “Escute a sabedoria do seu corpo”, “Preste atenção aos sinais que o corpo envia” ou “Conecte-se consigo mesmo”. Também a proliferação de ginásios é um reflexo de como a relação mente-corpo se enraizou no imaginário coletivo das sociedades ocidentalizadas.
Mas o que quer realmente dizer “ouvir o corpo”?
O desafio de “ficar” com as sensações
À primeira vista, pode parecer simples: estar em silêncio, num estado de atenção ou meditação, e deixar o corpo falar para que surja equilíbrio e auto-respeito. Mas a experiência, na prática, é bem mais desafiante.
Quando tentamos “ouvir” o corpo, muitas vezes a mente toma o controlo: foca-se numa sensação e logo procura interpretá-la. Por exemplo, uma palpitação no peito é rapidamente nomeada como “ansiedade”. Mas esta nomeação não nos revela a verdadeira natureza dessa ansiedade, nem a sua origem, nem as condições que a fizeram surgir. Para isso, é necessário permanecer na experiência — estar com a palpitação, sentir como é, o que faz, de onde vem e porque está ali.
Na prática clínica vejo como este exercício é difícil. Alguns clientes sentem-se preparados para parar e contactar com as sensações do corpo. Outros acham estranho ou desconfortável e afastam-se rapidamente. Mesmo os que gostam de sessões experienciais tendem a não permanecer verdadeiramente na experiência. E quando os fenómenos novos e desconhecidos começam a emergir, a mente naturalmente tenta controlar. É um reflexo de vigília, mas que interrompe o processo de escuta profunda.
Costumo identificar três formas de reagir:
- Quem se abandona à experiência e descobre um mundo interno rico, mesmo que difícil.
- Quem evita largar o controlo e não se entrega.
- Quem entra em contacto, mas apenas para tentar dominar a experiência.
Mesmo nestes dois últimos casos, o processo é útil: ajuda a explorar, por exemplo, o significado da necessidade de controlo na vida daquela pessoa.
O que é o Focusing?
É aqui que entra o Focusing, técnica desenvolvida por Eugene Gendlin (1926-2017), filósofo e psicólogo próximo de Carl Rogers. O Focusing propõe-se a aceder à experiência vivida no corpo antes de ser interpretada pela mente.
Segundo esta abordagem, tudo o que vivemos é primeiro sentido e inscrito no corpo. Depois, a mente procura dar sentido através de categorias racionais e culturais. Ou seja, os nossos sentimentos já chegam “filtrados” pela linguagem, pela educação e pelo contexto social. O Focusing, pelo contrário, procura a experiência original, pré-verbal, a que Gendlin chamou felt sense: uma sensação difusa, vaga, mas carregada de informação implícita. Pode manifestar-se como pressão, calor, nó, leveza, tensão ou movimento interno.
Reconhecer o felt sense
Todos já tivemos momentos em que encontramos a palavra certa e sentimos alívio, como uma respiração que se solta. É o corpo a reconhecer a correspondência com o seu felt sense. O mesmo acontece quando recordamos uma situação mal resolvida e sentimos algo estranho no corpo, difícil de nomear, mas claramente presente.
O difícil é permitir-se permanecer nesse lugar. Quando acolhido com respeito, o felt sense “desenrola-se” e revela novos significados, mais profundos do que a mente consciente poderia organizar. É uma porta de entrada para o inconsciente experiencial, sem necessidade de interpretações externas.
O grande valor do Focusing está aí: permitir que a pessoa encontre significados vindos de dentro, numa verdadeira reconexão entre corpo e mente, em sintonia com as abordagens fenomenológica e existencial.
O Focusing em psicoterapia
Atualmente, já existe um modelo psicoterapêutico específico: a Focusing Oriented Therapy (FOT). Trata-se de uma abordagem experiencial que pode ser integrada em diferentes orientações terapêuticas, como a existencial, humanista, psicodinâmica, cognitivo-comportamental de nova geração, entre outras.
O papel do terapeuta é ajudar o cliente a voltar-se para dentro e reparar no que sente no corpo, sem pressa de interpretar. O objetivo é encontrar palavras, imagens ou gestos que ressoem com a experiência corporal. É uma abordagem pouco diretiva, mas profundamente transformadora.
Em Portugal, o Focusing ainda não é muito conhecido. Recentemente, a SPPE (Sociedade Portuguesa de Psicoterapia Existencial) lançou uma formação de dois anos que habilita os participantes como formadores qualificados neste modelo. Decidi frequentar esta formação, depois de ter conhecido a técnica através de Greg Madison, especialista internacional na área, que a leccionou aquando da minha formação na SPPE.
Posso dizer que foi uma experiência inesquecível e revolucionária: aprendi a confiar mais na sabedoria do corpo, esse saber íntimo e silencioso que tantas vezes nos escapa. Afinal, o corpo sabe mais de nós do que nós sabemos dele.
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